A morte definitivamente não lhe caía bem. Avizinhou-se cedo demais, atraída pelos inúmeros maços de cigarro que terminaram por levá-lo à insuficiência cardíaca e à cama abominável de um hospital. Era, na ocasião, um homem ainda bonito, os olhos verdes, a pele morena, 1,95m de altura. Embora o mal que o arruinava se desenhasse, sorrateiro, havia tempos, acabou eclodindo de repente e com furor. Quando tudo aconteceu, Mario – o homem bonito portava um nome comum na Itália, herança dos antepassados que migraram da Sicília para o Brasil – tinha 52 anos, e a menina que agora o observava, apenas 4. Ele fizera uma carreira respeitável como executivo. Mas àquela noite, muito frágil, não exibia o menor sinal de que ocupara a presidência da poderosa General Motors. A garota provavelmente não compreendia direito o que se passava. Estava na fase em que a vida mais parece um jorro contínuo e potente, sem começo nem fim. Perto dela, se encontravam a mãe, Odete, e a única irmã, Olenka. Num determinado momento, Mario quis conversar com cada uma separadamente. Odete e Olenka concordaram em sair primeiro do quarto. “Claudia, minha filha, vou lhe contar um segredo: você nasceu para o palco, nasceu para brilhar. Promete que jamais se esquecerá disso?” A infância, ninguém discordará, é um território ambíguo, em que a lucidez se deixa iludir cotidianamente pela fantasia. Claudia, no entanto, garante que não inventou ou exagerou a cena: o pai lhe profetizou mesmo aquilo quatro décadas atrás. Falou devagarzinho e selou o vaticínio com um abraço. Horas depois, morreu. — Em dezembro de 1966, Odete ouviu presságio semelhante da irmã de criação, uma negra gorda e risonha. “Voe para a maternidade!”, ordenou-lhe Maria, logo que acordou. “Maternidade? Enlouqueceu, mulher? Não sinto contração nenhuma”, reagiu Odete, grávida de nove meses. “Você não sente nada, mas dará à luz daqui a pouco. Sonhei que uma nave espacial trará a criança. Vai ser uma bonequinha magra e espichada, com os cabelos lisos e bem escuros. Ela virá dançando.” De fato, Claudia chegou naquele dia 23, em Campinas (SP), onde a família morava. — Odete rondava os 45 anos e adentrara a menopausa quando tomou ciência da gravidez. Enfrentou, portanto, uma gestação arriscadíssima. “A senhora deveria interrompê-la”, aconselhou o obstetra. “O bebê nascerá com problema.” Hoje, admitindo-se desastrada, a atriz costuma dizer que o médico acertou na mosca. “A Claudia é o seguinte: em noite de gala, surge maravilhosa na escadaria do Theatro Municipal. Ostenta um vestido chiquérrimo, o melhor sapato, um colar incrível e distribui sorrisos lá do alto”, gosta de descrever o amigo e comediante Miguel Falabella. “Todo mundo, seduzido, lhe dirige o olhar. A diva, então, trata de descer a montanha – um, dois, três, quatro degraus e... pimba! Tropeça no vestido, arrebenta o colar, escangalha o sapato e rola escada abaixo, às gargalhadas.”
POR QUÊ, afinal, a atriz seguiu à risca as previsões de Mario e Maria? Será que correu atrás dos próprios anseios ou, sem perceber, considerou seus os desejos dos outros? Mais: será que, inconscientemente, procurou vingar a sina da mãe (na juventude, Odete rompeu os meniscos e abortou uma auspiciosa trajetória como bailarina clássica)? Questões desse tipo nunca perturbaram Claudia. A vocação para a arte sempre lhe soou genuína e inescapável. Antes dos 5 anos, já se apresentava na academia de dança que Odete montou depois de ferir os joelhos. Com 7, desconcertou o mitológico coreógrafo norte-americano Lennie Dale, que fundou, comandou e integrou o grupo Dzi Croquettes, ícone da contracultura brasileira. A menina insistiu para conhece-lo mal soube que a trupe ensaiava num teatro de São Paulo. Conduzida pela mãe, se aproximou do ídolo, que treinava uns passos de mambo: “Oi, moço! Me chamo Maria Claudia Motta Raia e posso dançar como você”. Apesar da grande diferença de idade, se tornaram unha e carne até o falecimento de Lennie, em agosto de 1994. — “Deus do céu! Cadê minha chupeta?!”, alarmou-se Claudia, à beira dos 14 anos, assim que desarrumou as malas num apê do Harlem. Ela acabara de aterrissar sozinha em Nova York, sob protestos de Odete, para usufruir de uma bolsa que o American Ballet lhe concedera. Por absurdo que pareça, ainda usava chupeta na hora de dormir. “Cadê a desgraçada? Cadê?”, indagava-se em pânico antes de notar que a perdera dentro do avião. Nem Freud ousaria imaginar um episódio tão simbólico.
DESASTRES aéreos, acidentes de carros, incêndios, catástrofes da natureza. Claudia se julga protegida de tais infortúnios. “Sou filha do tempo”, confidencia, na tentativa de justificar tamanha segurança. Mas não consegue explicar com clareza o que significa a expressão. Também afirma que carrega na alma o “chip da alegria”. Por isso, raramente se deprime ou sucumbe às dificuldades. Adepta do budismo há 19 anos, está convicta de que desfruta a última reencarnação. Na verdade, intui que nem precisava ter renascido, já que limpou o carma em vidas passadas. Só retornou agora por vontade própria. Para quê? Talvez para crer (e narrar) como destino a combinação de persistência, talento, diplomacia e acasos que a transformou numa estrela.
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